As
coisas foram feitas para dar errado, se darem certo é magia. Pensava ela
sofrega, parada na cozinha, esperando o coador passar o café. Ela respirava
fundo até o ar preencher todo o seu corpo com aroma de café do bule, as vezes
dizia "eu não, eu não, eu não...". Falava sozinha com a mão direita
nos seios e a esquerda apertando a testa, na posição dos olhos da sabedoria. Eu
observava por trás escondido no barulho do chuveiro.
Quase só, eu e o nosso gatinho
canthy que estava começando a aprender novos contatos, e passava o rabo pela
primeira vez na minha canela sem olhar pra mim. Atrapalhando a minha espionagem
masculina, o canthy era o mimo de Gabriela, com ele, ela conversava tudo que
não me contava. Ele era uma criancinha dentro de casa. Ela não suportava vê-lo
fora do cercadinho que fizemos para o gato.
Voltei correndo para terminar o meu banho
e preparar para os suplícios dos desejos de uma vontade a dois, de uma mulher
em dois. Escuto: "Tá atrasando..." .
Hoje é dia de apertões, exprimidas,
esfregadas, empurrões e união de pessoas no caminho do trabalho. Eu sei que ela
odeia esses dias, mesmo que eu faça retaguarda... Fingi que não escutava.
Hoje não quero escutar muitas
coisas. Fiquei quietinho, só movimentando o tombo da água do chuveiro para
parecer que estava esfregando alguma parte. Na verdade estava só fazendo
movimentos em círculos para distrair e passar o tempo.
Agachado na água do chuveiro,
deixava a água cair enquanto observava meus pensamentos com água passando pelo
corpo. Olhava nos meus pés que tinham umas unhas mal cortadas e cutículas
gordinhas e úmidas, branquinhas. Respirava fundo até entrar um pouco de água
pelo nariz. Segurava o ar até ficar tonto e soprava pelo nariz o mesmo ar - sentia
uma sensação de purificação. Purificava aquele momento e questionava-me sobre
aquela água que não parava de cair e escorrer da torneira aberta. Ali chamei de
cachoeira.
Muitas vezes havia aconselhado as
pessoas a entenderem que os alicerces da vida não são como os alicerces de uma
edificação concreta que vemos e fazemos diversos ralos para nossas águas usadas.
Esses alicerces da vida as vezes sustentam edificações que não são visíveis a
olho nú e sustentam, na verdade, pensamentos que não estruturam o dia a dia de
alguém, apenas estruturam a sua luta diária. Só percebemos isso em completude
quando escutamos os bêbados anônimos em um bar qualquer, num encontro sem
combinar, quando nos dizem o que realmente dói, e não dos resultados e causas
daquela dor, ou daquele desmoronamento de ralos. Peguei essas explicações para
me ajudar a mim mesmo, já que ajudaram tantos que me aporrinharam com questões
que não se resolvem com uma enxada e nem uma bacia de roupas encardidas pra
lavar.
A água caia nos meus pensamentos de
psicólogo de boteco. Fazia barulhos de prata, próximos de barulhos de areia com
água da chuva que só se escuta em praia fina e deserta. E até que o tempo passou e já me lembrou
outra edificação que é concreta e é meu emprego. É outra emoção diária e por
isso agora tenho que sair do banho.
Alguém também deve estar pensando
que hoje eu devesse preparar distrações femininas acima do chocolate. Chocolate
hoje é básico. Devo então preparar um jantar surpresa - mulher fica loucamente
feliz por uma comida masculina - nem todas gostam de pimenta. Um filme
romântico, romance e ação - se não, ela pode dormir. E depois eu ainda faria
massagem nos dedos dos pés. Nos pés, canela, coxa e no resto? Beliscões,
belisquinhos nas costas todas. Alternadas em ritmo, velocidade e intensidade.
Sem esquecer dos aromas. E do vinho - dois vinhos diferentes. Tá bom pro meu
bolso e consolo. E ainda, na massagem, enquanto assopro e escorrego as mãos por
um fino colchão de ar entre as palmas da mão por cada geografia daquela pele
que amo e que me ama. E que casamos. É a vida.
Enfim, a aporrinhação indicativa do
presente atual da esposa é para ter um filho. Eu não quero ter filho. Ela quer.
E mulher quando quer, quer.
(continuamos outro
dia, caro leitor)